Sábado, Março 21, 2009

Jack & Mônica - telefone II


Metade do dia passou sem que eu tivesse coragem de pegar o telefone enquanto ele ficava lá, sendo ele mesmo. De hora em hora apitava para lembrar que existia, sempre piscando aquela luzinha verde, como se risse da minha cara. “Estou aqui! Estou aqui!”, Ah...que irritante! Se ninguém ainda havia percebido, eu não ia fazer o papel ridículo de discar aquele número. Como era mesmo? 310-829.2435!
Mas, eu sou teimosa, não idiota. Peguei uma dose extra-grande de café puro, forte e sem açúcar e fui para o computador. Palavra mágica: Google. Como faz para descobrir de onde é um prefixo de telefone? Digitei 310. Pareceu um pouco estúpido a princípio.

“www.310.com” - uma loja virtual de artigos esportivos, site under construction.
“310.org” , um site de música, crítica de CDs e animações shockwave.
“310 - North American telephone area codes 310 and 424 are West Los Angeles and South Bay Area of Los Angeles County ”.
Ha! Santa Wikipedia! Lá fui eu.

Mega aula de “DDD”. Até mapinha tem no site, e todas as explicações de mudanças e substituições de código de área e seus motivos incompreensíveis. Há quem não saiba que Los Angeles não é exatamente uma cidade...é um aglomerado delas; e os lugares que a gente acha que são bairros, são na verdade cidades. É por isso que cada uma tem seu código de área. É como se precisasse de um DDD novo para cada bairro de São Paulo.
Mas o que interessava realmente estava ali na próxima página, na lista de regiões por código de área: “310: Santa Monica, Malibu, Torrance, Beverly Hills, Catalina Island;” em resumo, se você mora bem e é cool, você ganha, no juízo final, um telefone que começa com 310.

Então meu fantasma de olhos azuis era cool e tinha dinheiro bastante para morar bem. Ou era o jardineiro da casa de alguém com os requisitos básicos de uma pessoa 310, o que já o faria mais rico do que eu. Mais rico e mais pão-duro, já que fica pedindo para EU ligar. Então, eu...euzinha, aqui no hemisfério sul, vou discar um número internacional e falar em inglês com o jardineiro de algum ator gostosão. “Oi, ta sem crédito?...me dá o número do seu patrão.”

Ah...como eu queria que por dentro eu estivesse sendo tão espirituosa. A verdade é que aquele, como os outros sonhos, tirava a minha paz e todo o meu senso de realidade. Minha verdadeira vontade, às vezes, era bater na porta de uma clínica psiquiátrica e pedir arrego: “Me leva, moça...me amarra que eu preciso!”

A casa me sufocava com a sensação de estar deixando de fazer alguma coisa. Tudo estava feito, e não havia o que me fizesse discar aquele número. Peguei o carro e saí. Tinha uma feirinha de antiguidades e artesanato no parque ali perto de casa, então achei que não precisava ir muito longe para me distrair. O lugar estava cheio de gente bonita e crianças alegres. Havia música no coreto, barracas de comida, grandes áreas verdes para descansar e uma apresentação de dança na pequena ilha, no meio do lago. Divertido. Comprei um pastel - daqueles que a gente não conta para ninguém que gosta - e fui sentar na beira do lago. Assim que sentei, um homem de chapéu com um realejo veio chegando para o meu lado.

“Vamos ver sua sorte, senhorita?”
“Vamos”,
eu respondi sabendo que ultimamente a sorte havia me deixado. Seria engraçado ver a cara dele quando descobrisse que todos os bilhetinhos tirados para mim estariam em branco. Ele se assustaria achando que era algo sobrenatural, mas mal sabe ele que “sobrenatural” seria se houvesse alguma sorte reservada para mim.

Ele ignorou meu olhar descrente, e começou a rodar a pequena manivela que tocava uma canção que eu não identifiquei. Enquanto isso, um mico escravizado assustador abria a gaveta da caixinha e escolhia um papelzinho azul para mim. O mico esticou o mini-braço com a mini-mão que parecia a de um humano que caiu nas garras de uma tribo encolhedora de cabeças, e tentou me entregar o papel. Eu não teria coragem de pegar nada que viesse daquela pequena aberração. Olhei para o homem num pedido de socorro, mas descobri que ele não era aberração menor. Na verdade, homem e mico eram um par perfeito, talvez vindos do mesmo DNA. O mico era o “Mini Me” do realejo. O homem balançou a cabeça revirando os olhos, mas resolveu me salvar. Pegou o papelzinho azul da mão de seu mascote-xerocado e me entregou. Sem olhar para o papel, eu dei uma nota de cinco para ele, que agradeceu e foi embora. Enquanto ele andava, o mico, em suas costas, olhava para mim e parecia rir, o mini-monstro.
Assim que me senti numa distância segura, olhei o papel.

“O universo aponta os caminhos do destino. O homem inteligente os segue.”

Não! Eu sabia, droga! Eu sabia que qualquer que fosse o oráculo ridículo que eu me permitisse consultar, diria a mesma coisa. Nem um biscoitinho da sorte diria nada vago e relaxante naquele dia estúpido.
Levantei do chão de mal humor, amassei o papelzinho do monstro e fui ver outra coisa. Quem sabe gastar dinheiro em objetos desnecessários me distraísse da idéia de seguir os avisos do destino. Grande tapeadora de oráculos!

Saí olhando as barracas sem uma ordem coerente, até que uma me chamou mais atenção. Eram obras feitas de conchas - uma mais brega do que a outra -, quase todas marinas com a presença de sereias. Mas o mais interessante era a artista que as confeccionava: uma velhinha de cabeça muito branca e bochechas coradas, com delineador azul claro combinando com os olhos azuis, toda vestida de turquesa. Ela própria era a peça mais kitch da barraca. Ela sorriu faceira. Sua voz era jovial para a idade, e a alegria que vinha dela, mal cabia no parque. Perguntou se eu procurava por alguma coisa especial. Eu disse que estava apenas olhando, e ela sorriu um sorriso inesperado, mostrando dentes perfeitos e muito brancos, que definitivamente não condiziam com a idade dela. Eu franzi um pouco a testa, estranhando, e ela reparou. Colando pequenas conchas em mais um quadro de sereia ela disse:

“Às vezes, as escolhas têm um preço.”
“Do que a senhora está falando?”
“Da estranheza nos seus olhos.”

Eu fiquei sem jeito.
“Desculpa...é que é difícil definir a sua idade. Não que eu precise, mas é...não sei. Desculpa.”

“Está tudo bem. Eu sei. Todo mundo estranha, mas nem todo mundo percebe exatamente o que é. Parece que você é mais sensível.”
“Sou?”

“É...eu estou vendo nos seus olhos. Começa assim, e depois são os cabelos...depois a postura...mais tarde...”

E ela mostrou a si mesma, como se exibisse uma obra de arte.
O que ela queria dizer? Que eu seria mais tarde como ela? Por que?

“Não estou entendendo...”

“Eu precisei escolher, mas achei que tudo pudesse esperar... Que o que era meu o seria para sempre...que tudo era mágico demais para ser real... mas não era verdade.”

Minhas sobrancelhas se juntaram, como se pudessem me ajudar a fixar e entender o que aquela figura falava. Ela continuou.

“Chegou o dia em que o destino cansou de mim. O mar foi embora e quando eu me olhei no espelho, estava assim.”

“Por que?”


“Ah...acho que é como um feitiço...uma forma de me lembrar todos os dias que o tempo passa, e que quando a gente não vai buscar o que a alma nos pede, ela envelhece e entristece.”


Aquilo me encheu de uma tristeza quase palpável.

“Mas não há o que fazer? Não tem como você reverter isso agora?”

O futuro muda de acordo com as decisões que você toma. Se eu voltasse atrás hoje, e seguisse aquele mesmo caminho, não haveria nada do outro lado. Aquele futuro, ficou no passado. Só o que há dele são algumas lembranças e isso” - ela pegou nos cabelos - “o símbolo do tempo que eu perdi”.

“O que é a sereia?” Eu perguntei, curiosa.

“La Cantante. O impulso irresistivel a que eu tive a ousadia de desafiar.”

“Parece triste...” eu disse baixo, com medo de magoa-la. Eu podia imaginar a dor que vivia dentro dela agora. “Mas você parece ter uma alegria ...”

“É o conhecimento. Eu uso o que vivi para salvar outros do meu calvário. Sempre que alguém está salvo, deixa parte da alegria comigo. É uma troca. Eu não cumpri o plano A do destino, mas ele me deu uma boa missão como plano B, e é uma missão feliz.”

“Você está dizendo que eu preciso ser salva?”

Ela soltou uma gargalhada gostosa.

Não...só estou respondendo o que você me pergunta.”

Eu ri junto com ela, olhei mais uma vez as sereias e me despedi.
Ela me chamou de volta, perguntou se eu gostaria de levar alguma coisa.

“Ah...adoraria, mas não trouxe dinheiro.”

Ela virou a cabeça como se estivesse em dúvida.

“Mas eu posso te dar um presente, não posso?”

Mais do que rápido, tentei me livrar. Eu não teria nem para quem dar aquela coisa horrível.

“Não, não! Este é o seu trabalho...eu não posso aceitar.”

Ela sorriu com todos aqueles dentes.

“Eu nunca daria um deles a você. Eu os faço para mim. Quero lhe dar outra coisa.”

Ela enfiou a mão num baú que estava no chão, e tirou uma coisa branca, do tamanho da mão.

“Pegue...para você se lembrar.”

Era um caramujo branco, estranho, com brilhos de pedra e não de concha, que parecia ter sido incrustado com milhares de minúsculos brilhantes. Era lindo!

“Nossa...é incrível...nunca vi um assim.”

“Não é?” - Ela disse esticando o caramujo para mim. - “Escuta. Põe no ouvido.”

Eu obedeci.
Encostei o caramujo no ouvido e um zumbido estonteante penetrou meu cérebro como uma adaga afiada nos dois gumes, cortando por onde passava. Tudo girou. Eu senti um perfume forte de açúcar, baunilha e lavanda que entrou pelas narinas queimando até encontrar a ponta da faca no alto da minha cabeça.
O mundo escureceu.

Silêncio.

Uma dor no meu peito. Uma pressão forte. Um perfume...
Tive medo de abrir os olhos. Abri um só. As ripas acima da minha cama. “Como?”. Tive medo de abrir o outro, mas o fiz. Procurei o relógio na cabeceira: oito e meia. Olhei para a janela, era dia. Tive medo de levantar. Virei de lado e cobri a cabeça com o travesseiro. Meu rosto tocou uma coisa gelada. Tive medo de ver o que era. Meu rosto vibrou. Era o celular. Tive medo de ver quem era. Empurrei o travesseiro e afastei o rosto devagar. Olhei o visor...310-829.2435.

Pisquei várias vezes e olhei de novo: 310-829.2435.
Meu coração congelou. Fiquei olhando sem ação, apoiada nos cotovelos. Atender ou não, não era a única coisa que ocupava minha cabeça. Ainda havia o zumbido. Ainda não sabia se estava acordada. Não tinha mais a menor idéia do que era ou não realidade. A imagem da jovem-velha ocupou meu olhos: “o tempo que eu perdi” foi a frase que me veio.

Sussurrei ao telefone.
“Alô.”
Houve um silêncio prolongado.
“Alô?”
Nada. Eu não tive coragem de desligar. Podia perceber alguém respirando. Era uma constatação e tanto: o dono daquele número respirava! Tentei outra vez, em inglês.
“Hello.”
A respiração tornou-se mais intensa. Um sussurro quase inaudível e triste, soou como um lamento do outro lado da linha.

“Quem é você?”

“Quem é VOCÊ?” - eu sussurrei de volta.

Ele ficou em silêncio e foi como um vácuo gigante no tempo. Uma espera que podia esvaziar o pensamento de todos os cérebros do universo. Não aguentei e respondi antes dele.

“Mônica.”
“Monica...”

“É...Monica. Você?”


Hesitante e ainda sussurrando:

“Você...sonha...também?”

Wow! Como assim? Ele sonha? Aquilo parecia brincadeira, e eu não aguentava mais me sentir um fantoche nas mãos do destino, do tempo, da mulher das conchas ou do meu próprio delírio.

“Você sonha?” - eu devolvi, temendo a resposta que, na verdade ele já havia dado.
“As vezes...mas hoje... o número... Por que eu sonhei com o seu número, Monica?”

Ele parecia quase tão angustiado quanto eu.

“Eu não sei. Eu sonhei também...mas eu não sei o seu nome. Me diz?”
"Jack.”

“Você está em Los Angeles?”
"Sim. E você? Brasil, ne? ”

“São Paulo.”

“Eu te convidaria para almoçar, se fosse São Pedro.”

Uma risada saiu junto com o ar do meu nariz.

“Você está bem...Jack?”

Em nenhum momento, aumentamos o tom de voz. Sempre um sussurro, como se o outro fosse desaparecer ao menor movimento mais brusco.

“Acho que sim. E você?”
“Aliviada, acho.

Médio...depois do caramujo eu não sabia mais o que pensar. Eu estaria acordada agora, ou em poucos minutos abriria os olhos e veria as ripas no teto do quarto?

Jack?”

“O que?”
“Seus olhos...que cor?”

“Os seus são castanhos, eu sei.”
“são.”
“Azuis.”
nós falamos ao mesmo tempo.

Eu sabia...
Ficamos em silêncio novamente. Eu estava fazendo 865 perguntas mentais, mas não era capaz de pronunciar nenhuma delas. Tive a impressão do mesmo estar acontecendo com ele.

“Onde você tá agora?” Ele perguntou.
“Na cama.”
“Que horas são?”
“Quinze pras nove, acho. E você?”
“Na praia. Vim correr pra me ac....”

“Se acalmar do sonho?”
“É...eu sempre fico muito...”

“Tá tudo bem agora. Fica bem.”

“Monica..."
"O que?"
"Me promete?”

“Qualquer coisa...”
“Sempre que eu ligar...atende. Sempre?”

“Prometo.”
“Jura? Não desaparece?”

“Juro. Você também.”

“Nunca mais...mesmo.”


O silêncio voltou e com ele um aperto no coração. Que diabo!

“Monica, tenho que desligar, mas...posso ligar outra vez hoje?”
“Quantas vezes você quiser, Jack. Eu vou estar aqui. Posso também?”

“Ah...por favor...E nem pense em me largar de novo.”


De novo?
Foi ruim desligar. Pela primeira vez o termo “linha telefônica” fazia sentido para mim. Enquanto falávamos, havia uma linha que nos ligava um ao outro. Não que ela não existisse antes, mas esta parecia mais palpável. Desligar foi cortar esta linha, e eu posso imaginar um Jack de olhos azuis vagando no espaço, perdido, longe de mim. Desligar o telefone era desligar a gravidade. Para ter os pés no chão novamente, precisariamos estar conectados de uma forma real.
Com certeza eu ligaria para ele hoje...e amanhã, e todos os dias, até que todo o dinheiro que guardei na vida tivesse se esvaído em ligações internacionais.



imagem: Whirlpool Galaxy - M51a, localizada a 23 milhões de anos luz, na constelação de Canes Venatici

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Quinta-feira, Outubro 23, 2008

Jack & Mônica - outra hipótese I

"And when I touch you
I feel happy inside,
It's such a feeling
That, my love, I can't hide."
Lennon & McCartney

Eu fui jantar com a Wanda e as filhas -- Katlin e Heidy -- e os respectivos namorados. Três casais e eu, sozinha. O garçom serviu as bebidas, um dos meninos pediu um vinho, o que deixou a Wanda tensa, porque ela anda muito sem grana e não é bem assim tomar vinho francês em Los Angeles.
A gente estava lá conversando quando o telefone da Katlin tocou. Desde que o pai dela teve um problema com a polícia, telefone tocando à noite a desagrada visivelmente; sempre esperando o pior. A cara que ela fez quando perguntou: “QUEM??” foi quase assustadora. Depois, de uma hora para outra, começou a falar baixo, levantou e saiu da mesa. Todo mundo estranhou, mas eu me encarreguei de tentar levantar a conversa para acabar com o mal-estar.
Quando a Katlin voltou, estava de testa franzida, cara de pouquíssimo entendimento, sentou e foi bombardeada de perguntas: “Quem era?” “ O que houve?” “Aconteceu alguma coisa?” “Tá tudo bem?”
Ela ergueu os ombros com a cara esquisita e disse. “Tá. Meio surreal…mas ta tudo bem.” O namorado olhou feio pra ela, ela falou alguma coisa no ouvido dele ao que ele respondeu: “Coisa estranha…” E acabou o assunto quando o garçom chegou com os pratos.

Eu tinha dado uma única garfada no meu peixe, quando a Katlin cutucou o namorado e olhou para alguém que se aproximava. Claro que eu percebi, e olhei também.
Ai meu Deus! Eu paralisei.
Não conseguia mexer um músculo, embora quisesse gritar.
Lembra o homem no fundo do mar? Aquele do sonho? Aquele que tentava me dizer alguma coisa e eu não entendia? Ele. De verdade. De carne e osso. De camisa branca pra fora do jeans. De cabelo despenteado. De garrafa de vinho na mão. E nervoso.
Ele parou perto da mesa olhando pra mim, tão paralisado quanto eu. Juro que eu não tinha certeza se eu estava acordada. Fiquei confusa…o que ele estava fazendo ali? Por que estava me olhando daquele jeito? Quem disse que ele podia existir e ainda aparecer assim? Quem é essa criatura, pelo amor de deus?
Ele se curvou um pouco, meio com medo de cair, colocou a garrafa na nossa mesa, me deu um sorriso nervoso, daqueles que abrem e fecham várias vezes sem saber se podem acontecer, falou com a Katlin, sem tirar os olhos de mim nas primeiras três palavras.
- Katlin! Que bom ver você….
- Oi Jack… você veio!
Nessa frase todo mundo olhou pra ela com cara de espanto.
- Gente, eu convidei o Jack pra jantar com a gente. Tudo bem?
E ele:
- Me atrasei demais?

Foi o diálogo mais fake que eu já ouvi.

Mais do que rápido, como se fosse um concurso, a Wanda e o namorado da Katlin começaram a dizer, sem parar, frases variadas para consertar a situação e tentar fazer tudo parecer normal. O namorado da Heidy providenciou uma cadeira para ele, mas ele não conseguiu sentar. Cumprimentou um por um, até chegar em mim.

- Oi, eu sou Jack.

Ele balançava a cabeça num “sim” que parecia querer que eu concordasse, que eu dissesse: “sim, sim, você é o Jack”.
Eu disse o meu nome, e ele repetiu como uma grande descoberta:
- Môooonica…Muito prazer, Mônica…

Não, eu ainda não estava pronta para me mexer. Quando ele esticou o braço para apertar a minha mão, eu precisei fazer alguma coisa para os músculos ouvirem o meu cérebro porque eles ficaram irreversivelmente surdos. (Trombetas: ATENÇÃO NEURÔNIOS, COMANDAR BRAÇO DIREITO! MOVIMENTAR MÃO DIREITA! FORÇAR SORRISO ESPONTÂNEO!”. Ah…quanta energia gasta em três simples gestos: Estica braço, abre mão, sorri. Fiquei exausta só de contar.)
Por alguns segundos fiquei olhando para a mão dele ali estendida. A mão! Aquela mão! Lembra que eu falei que vi a mão dele no sonho e era demais? Pois era demais! Naqueles segundos eternos eu vi todos os dedos longos, a palma grande, o formato honesto das unhas, a linha da vida, a da cabeça, a do coração. Mãos eloquentes…mãos eloquentes…Ele me olhando, a mão esticada para mim, eu paralisada, ai que aflição, se mexe de uma vez!Foi!
Consegui me movimentar e sorrir um sorriso provavelmente idiota, mas pelo menos foi; e aconteceu o mais bizarro: quando meu dedo tocou a base da palma da mão dele, a proximidade produziu um mini raio de energia estática, que a mesa toda viu. O lugar era meio escuro, iluminado por velas, e a faísca pareceu um relâmpago tão forte, que a Heidy deu um grito. Ele soltou uma risada nervosa, e eu não consegui não abrir um sorriso gigante. Ele segurou a minha mão com força e não largou mais.

Isso durou muito tempo. A Wanda tentou mudar o clima da coisa fazendo perguntas sobre a família, “Jack, como vai sua mãe?” coisas do gênero, mas ele respondeu a todas sem largar a minha mão ou sentar. Entre eu e ele estavam Heidy e o namorado, com dois braços atravessados na frente deles. A Katlin perguntou se o Jack não preferia sentar, ele me olhou novamente, de uma forma um pouco mais urgente e respondeu alto demais.

- NÃO! – e continuou mais baixo - Quer dizer…não obrigado. Na verdade eu já jantei, eu só queria mesmo entregar essa garrafa de vinho para vocês comemorarem.
- Comemorar o quê? – a Wanda perguntou
Nessa hora, ele juntou a mão esquerda às nossas mãos direitas, segurando a minha com as duas dele.
- Comemorar....o encontro.

Aquilo tudo era muito surreal para eles. A verdade é que só eu e ele entendíamos o que estava acontecendo ali. Mas agora parecia que o resto da mesa meio que tinha desistido e resolveu ficar assistindo de camarote pra ver onde aquilo ia dar. Foi quando, ainda sem largar a minha mão, o Jack disse:

- Vocês vão me perdoar se eu roubar a Mônica de vocês, né?

A Wanda, como sempre curiosa e indiscreta, perguntou onde nós íamos "sem ela", e ele disse que não sabia, mas que nós íamos, e sem ela. Eu comecei a rir, porque ela merece demais uma resposta dessas, e foi só nessa hora que eu consegui relaxar, deixar meus ombros caírem, e soltar a mão do Jack. Meu Deus, ele olhava pra mim como uma criança, sorrindo com o rosto inteiro, sem nem tentar disfarçar uma euforia imensa que mal cabia no lugar. E eu, ai! Eu nem falava…estava tendo a visão mais incrível. Quantas mesmo são as maravilhas do mundo? Põe mais uma na sua lista.
Jack veio para perto de mim, olhou para a Katlin e disse:

- Katlin, você salvou a minha vida.
Ela olhou pra ele com estranheza, que conversa de salvar vida é essa?
- Sério…eu vou agradecer pra sempre.
E aí ele passou o braço pelas minhas costas, me puxou bem pra perto num semi-abraço e não se aguentou:
- Ahhh! Olha isso! – me apertando várias vezes – você existe! Eu consigo apertar você!
E me abraçou muito muito muito forte. Doeu! Aquele abraço doeu no peito, por dentro, como se estivesse torcendo todos os músculos, como se fosse um espasmo. Eu precisei puxar o ar com força para tentar conter a dor, e ele se curvou um pouco, demonstrando sentir a mesma coisa. Eu olhei nos olhos dele e estavam molhados. Não deu pra segurar nada, e eu também comecei a chorar, tentando não fazer uma cena, -- não chorar chorar, mas as lágrimas saíam sem eu poder controlar, não tinha como, não tinha mesmo. Ele me puxou de novo para abraçá-lo e falou no meu ouvido, bem baixo: “Por que eu tenho essa saudade de você?” Eu enxuguei os olhos dele o mais discretamente que pude, puxei o rosto dele para falar, no ouvido, que eu também não entendia, mas eu sentia o que ele estava sentindo.
A gente pediu desculpas, deu um tchau geral, eu peguei a minha bolsa e disse para a Wanda não se preocupar comigo. Quando ela perguntou se eu tinha a chave, ele respondeu antes que eu pudesse pensar:

- Ela não vai voltar hoje.
Eu franzi a testa pra ele, como se tivéssemos um segredo, mas ele me olhou meio bravo, meio me repreendendo e disse num tom mais grave:
- Você não vai voltar.
Tá, eu que não ia discutir, e nem queria mesmo voltar pra casa da Wanda onde eu estava hospedada há três semanas. A Wanda pediu pra gente contar o que estava acontecendo, e ele não me deixou responder. Disse que a história era muito longa, e que ele prometia contar depois, se tivesse um final feliz.

O Jack pediu o carro para o valet, e foi até o caixa pagar o jantar da nossa mesa. Disse que era o mínimo que ele podia fazer para agradecer o fato de ter conhecido a Katlin na infância e eu ter conhecido a Wanda um dia; de outra forma, nós nunca nos encontraríamos (imagina…a vida daria outro jeito, mas se ele podia dispor daqueles cento e poucos dólares, por que não?).
Eu fiquei na porta, esperando. Minutos depois, ele chegou por trás de mim, me abraçou, enfiou o rosto pelo meu cabelo e falou no meu ouvido:

- Quando a gente sair desse lugar eu vou te beijar tanto, mas tanto, que você vai morrer de beijo. Pode?
Eu ri, mas queria morrer! Você não sabe o que é ter aquele homem com todo aquele corpo que eu duvido que seja criação de Deus -- Deus não faria nada tão absolutamente irresistível – encostado atrás de mim falando no meu ouvido. Eu só consegui responder o óbvio: “Tenta.”
Era como se a gente estivesse junto há muito tempo. E estava, porque já fazia mais de um ano que eu sonhava com ele quase todas as noites. Ele não era novidade para mim, mas eu não sabia ainda a versão dele; ainda não tínhamos começado uma conversa que esclarecesse toda essa energia maluca que tomou conta de tudo, e que talvez fundisse de uma vez a cabeça dos dois.
O carro chegou, o valet abriu a porta para mim, eu entrei e já conhecia aquele cheiro de café, cigarro e perfume, misturado com banco de couro e cachorro. Parece horrível, mas eu juro que não é. É cheiro de carro de Jack, e eu já tinha aprendido a adorar aquilo em sonho, por isso não conseguia parar de sorrir. Ele entrou no carro e arrancou. Acho que dirigiu 300 metros sem falar, virou a esquina de uma rua tranquila, cheia de árvores e cercas baixas, em Beverly Hills, parou o carro, desligou, sentou virado pra mim, acendeu dois cigarros, me entregou um e começou a falar.

- Eu não tenho a menor idéia de quem você é. Eu sei que eu agi feito louco lá, mas não deu pra controlar nada. Era forte demais ver você ali e eu tinha que pegar em você, tinha que te olhar, e ah…você não deve tá entendendo nada!…mas você tá aqui!
Ele pegou a minha mão esquerda, começou a fazer carinho no meu braço, viu a minha tattoo e sorriu.
- Até isso é de verdade…
- Jack…
- Espera, não fala. Deixa eu te contar o que aconteceu, que acontece faz tempo. Você precisa ouvir pra não me achar um doido, até porque a essa altura não tem mais como eu fazer as coisas devagar, tentar não assustar você…e se eu assustei, me desculpa, mas não foge de mim, tá?…quer dizer, se você quiser fugir, eu não vou poder impedir, mas deixa antes eu te contar…
- Jack. Eu não vou fugir, você não me assustou, e acho que eu sei o que acontece…

Ora segurando as minhas duas mãos, ora fazendo uma verdadeira excursão pelos meus braços, sem parar, ele contou.

- A primeira vez faz um ano eu acho. Eu não sei direito quando começou. Eu sonhei com você, e você me pedia pra não esquecer o seu rosto. Só isso, muitas vezes, e o seu cabelo não tinha como esquecer, – mexendo no meu cabelo – era bem assim…

Enquanto ele mexia no meu cabelo, eu mexia no dele, e não tem como explicar a sensação de ter os cabelos dele passando por entre os meus dedos. É muito maior do que simplesmente ter cabelos passando entre os dedos: são os cabelos dele que muitas e muitas noites passaram pelo meu rosto, pelo meu pescoço, pelo meu peito, pelas minhas mãos, mas não eram reais. Agora são.
Ele continuou:
- Depois eu sonhei de novo, outra coisa, e depois de novo, e você foi chegando mais perto, já tinha me convencido a não esquecer a sua cara, e já tinha me dito outras coisas, e eu tinha medo. Me incomodava sonhar todo dia com a mesma pessoa, parecia coisa de gente maluca. Eu comecei a dormir mais tarde, não dormir, beber pra dormir mais pesado, e só baixei a guarda muito depois, na noite que eu toquei em você, e foi real. Então eu quero que você entenda o meu estado quando eu te vi. É você, entendeu? A minha loira do sonho. A mulher que dormiu comigo esse tempo todo, que eu vi todo dia, que eu não sabia se existia em algum lugar do mundo, se tava morta e era um fantasma, se era de verdade, se era imaginação, sei lá. Nem sempre a gente só falou. Nem sempre você só tava lá. Muitas vezes, muitas, inúmeras, incontáveis vezes a gente fez amor. E é mágico...

Eu fiquei sem jeito, mas eu sabia. Sabia de tudo e sabia do sexo, claro, porque ele também não ficava passeando nos meus sonhos, brincando de sereia no fundo do mar para sempre. Ele saiu do mar logo…e logo estava na minha cama.

- Eu sei.
- Sabe?
- Sei tudo, Jack…
- Você também?
- Também. Eu sonhei com você todo dia também, morri de aflição também, desisti de dormir também, baixei a guarda e entreguei a chave do castelo...também.
- Então você sabe…
- O que?

O Jack real tinha uma coisa melhor do que o Jack do sonho: ele era milhões de vezes mais carinhoso. Eu não vou dizer que ele é fofo, porque fofo é ridículo e não combina com um homem daquele tamanho. Se aparecer uma palavra que signifique a mesma coisa sem ser ridícula, eu vou ter prazer em dizer que ele não é fofo. Mas é. Ele é todo olhares e mãos…ele fala com palavras e com os olhos, com as mãos e com os ombros, ele diz o que quer e confirma com o resto do corpo. Ele é todo verdade, todo transparência e tudo o que essa verdade e essa transparência tinham para dizer, é que ele era o homem mais feliz do mundo por estar perto de mim, e não queria deixar isso acabar por nada nesse mundo.

- Que eu não vou desgrudar de você.
- Pergunta se eu quero.
- Eu não….

E ele me beijou. Lembra aquela hora que a gente se abraçou no restaurante e sentiu uma dor estranha, no peito? Dobra aquilo. Era uma coisa aguda, o coração sendo torcido feito uma toalha molhada, quase insuportável e ao mesmo tempo, pasme, trazia um alívio gigantesco. E o beijo? Foi como fechar um círculo que não devia estar aberto. Foi como beber água fresca depois de quarenta dias no mar; como um jato de sangue no cérebro depois de um desmaio. Alívio, volta para casa, terra firme finalmente. Depois, o beijo tornou-se hipnótico, tirando a nós dois do chão, fazendo com que o resto do planeta deixasse de existir e fôssemos só lábios, línguas, e um ballet de nós dois flutuando no espaço... uma droga que faz a pele tornar-se elástica e infinita, cada toque ser multiplicado por mil, fazendo a pele ser a única vida possível.
O Jack afastou os lábios um pouco, segurou minha nuca, olhou nos meus olhos e me disse o que eu sentia:
- Saudade…
- Muita.
- Não vai mais embora…nunca mais fica longe…
E me abraçou como se soubesse o que estava dizendo.

Nós saímos dali e fomos para a casa dele. Assim que entramos, o celular tocou e ele atendeu.
- Oi… desculpa desculpa desculpa! Eu esqueci. Desculpa.
Era uma mulher no telefone, dava pra saber pelo timbre da voz.
- Eu fui comprar o vinho. Comprei e tudo, mas encontrei uma pessoa, nem peguei o vinho…e saí com ela…eu tô com ela aqui.

Ele me olhou sorrindo todo feliz, me pegou pela mão e me levou para a cozinha, abriu a geladeira e pegou uma coca-cola, me mostrou, meio perguntando se eu queria, eu aceitei, ele colocou no balcão, pegou dois copos, encheu de gelo na porta da geladeira, abriu o refrigerante e dividiu nos dois copos.

- Não, você não vai acreditar, então nem vou contar.

Jack me entregou um dos copos, encostou no balcão ao meu lado com as pernas abertas, me puxou para a frente dele me encaixando entre elas e me abraçou, ainda falando no celular.

- Tá. Eu te conto e desligo: é a minha loira.

Eu escutei o grito dela do outro lado.

- DO SONHO?
- Do sonho…
- Como assim? Ela existe?
- Yep. E tá aqui comigo. Beijo tchau.
- Não! Me conta direito!
- Beijo tchau!!!
E desligou o telefone com o maior sorriso do mundo. Eu perguntei quem era e ele disse que era a irmã, que muitas vezes disse pra ele fazer terapia, porque estava obcecado por um fantasma.
Daquele sorriso lindo veio outro beijo, agora mais grave, quase que mais sofrido, prensado, engolido. Ele segurava as minhas costas me puxando para junto dele como se eu fosse fugir, usou as pernas para me prender, grudou em mim. Se afastou do balcão sem dizer nada e, ainda grudado me beijando, foi andando e me conduzindo. Quando eu quis me virar para ver onde pisava, ele me levantou no colo, colocou minhas pernas em volta do quadril dele e me levou para o quarto, nos jogou na cama, me olhou ofegante, tirando a camisa pela cabeça, me beijou outra vez falando dentro da minha boca:

- Deixa eu fazer de verdade o que eu fiz sonhando?

Claro que sim, lógico que sim, se ele prometesse que seria igual, mas eu não pediria uma coisa dessas, porque era difícil prever…De qualquer forma, nada que viesse do dono daquele beijo poderia ser diferente do que eu vi nos sonhos.
Eu fiz um "sim" com a cabeça, e senti o longo e aliviado suspiro que veio de dentro dele. Ele era meu. Não tinha como ser diferente. Assim que eu senti a mão dele levantando o meu vestido, subindo pela minha perna, tive mais certeza. O calor da palma, a pressão dos dedos, os movimentos perfeitos, delicados… As mãos eloquentes do Jack iam começar o seu mais belo discurso.
Se foi um raio que surgiu nas nossas mãos a primeira vez que se tocaram, uma tempestade magnética tomou conta de tudo quando ele entrou em mim. Foi lento, foi constante, foi mágico…Não sei se sei definir aquilo. Foi um respirar mais profundo do que o primeiro de todos, um nascimento, um dar à luz, foi romper a membrana invisível que separa as almas.

Depois de tudo, ficamos assim por um tempo que eu não sei contar…deitados de frente um para o outro, pernas trançadas, meu rosto colado no peito dele, os braços dele em volta de mim. Só o que se ouvia no silêncio mágico, eram as ondas quebrando na praia lá embaixo, e o entrar e sair lento, pausado, do ar dentro de nós.
- Mônica…
- Jack…
- Se eu disser uma coisa que tá engasgada aqui, você vai me achar maluco e fugir de mim?
- Se você continuar dizendo que eu posso fugir, vou.

Ele me abraçou mais forte.

- É que eu acho que eu...
- Fala.
- Não…não precisa.
- Eu sei...
- E você?
Eu me arrastei mais para cima, para olhar no olho dele.
- Mais do que eu sabia que podia.
Ele sorriu, me beijou e repetiu a minha frase:
- Muito mais do que eu sabia que podia…

Ali, na cama listrada pela luz que passava pela persiana de madeira, ficamos contemplando a imagem que por tanto tempo achamos que fosse só um delírio. Eu olhando pra ele, ele olhando para mim. Aos poucos, nossos olhos se renderam ao sono, foram ficando pesados, pesados, até se fecharem.
Pela primeira vez, em trezentos e noventa e nove dias, nenhum de nós precisou sonhar.


end of story

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Sexta-feira, Outubro 10, 2008

Jack & Mônica

"the long and winding road that leads to your door,
will never disappear, I've seen that road before
it always leads me here, lead me to your door."


Lennon & McCartney

Então me diz como é possível? Como essas coisas acontecem com ela, assim do nada, e acabam dessa forma? Se eu contar, parece mentira. Se fosse comigo dariam risada e me internariam num hospício (não que ela não tenha tido vontade de se internar por conta própria). O fato é que coisas assim não acontecem fora dos filmes! A não ser que ela esteja no meio...

Foi um ano inteiro daquela loucura: ela tentando se fazer de normal, mas sofrendo em silêncio para lidar com a obsessão. Não contou para ninguém além de sua terapeuta, que nunca teve um resposta convincente, um diagnóstico, nada. Seria bem fácil dizer que ela era louca, se a coisa não tivesse começado sem querer, de um sonho que ela não pediu para sonhar. Era este o fato que despertava a curiosidade da psicanalista que, ao invés de tratá-la, resolveu ver onde aquilo ia dar. Bem por isso era uma aflição solitária. Todos os dias ela acordava e dormia com o mesmo pensamento, a mesma imagem cravada no cérebro, mas enfrentava o dia-a-dia como se aquilo fosse um preguinho no sapato ou um jeans meio apertado: "é ruim, mas dá pra aguentar".

De todas as pessoas com quem ela conversava, só uma trazia alguma paz. Era Naele - uma amiga que ela conheceu no Facebook, mais velha, escritora, do outro lado do mundo, com quem tinha longas conversas diárias que a aliviavam do peso da obsessão. Naele nem sonhava com a angústia da amiga, conversava com ela sobre política, livros, filmes, roteiros até altas horas da madrugada, até o cansaço ser grande o bastante para garantir uma noite sem sonhos.

Ela apertou o botão verde do Skype e esperou, mas ninguém atendeu. Talvez Naele estivesse dormindo...tentou de novo. Depois de três ou quatro toques de chamar, alguém atendeu o Skype. Não era Naele.
- Oi.
- Oi, quem é?
- Jack. Acabei de chegar e ouvi o skype no escritório...me meti.
- Ah...oi...tudo bem? Cadê sua mãe?
- Boa pergunta...fica aí.
Depois de algum tempo, Jack voltou ao computador.
- Acho que ela foi abdusida!
- hahaha!
- Não tem ninguém em casa. Só eu e você.
- Tudo bem. Eu falo com ela amanhã...obrigada Jack.
- Vai dormir?
- Não, mas vou desligar.
- E eu?
- Que que tem?
- Tão ruim assim falar comigo?

Aquela noite, Jack se encarregou de ajudá-la a dormir de cansada como se tivesse sido encumbido desta missão. Ele ouvia a mãe contar várias histórias da amiga, e já compartilhava de alguma forma da mesma admiração. Foi assim que nasceu o primeiro fruto da amizade com a Naele: as conversas com Jack passaram a ser constantes. Muitas vezes Naele estava no escritório e Jack no quarto, ambos falando com ela, e quando Naele viajava, era Jack quem enchia as noites de carinho e gargalhadas.
De qualquer forma, Jack e Naele eram um paleativo...um pain killer...um tylenolzinho. Os dias ainda tinham 24 horas, e as 3 ou 4 passadas com eles eram nada diante das outras, quando a obsessão voltava com força. A cada pausa no trabalho um search no Google para ler possíveis notícias ou fofocas sobre o alvo de sua obsessão...a cada olhada no espelho uma conversa imaginária; a cada quilômetro no carro uma cena tórrida, um beijo na boca, uma frase matadora, uma vontade de se internar para fazer sonoterapia até o mundo acabar.

Quando ela perdeu uma pessoa querida a dor fez com que a obsessão a deixasse respirar um pouco. Mais uma vez, o alívio da dor morava na voz de Naele e na presença de Jack em seu celular, seus e-mails, suas madrugadas. Jack era perfeito, se não fossem seus três defeitos principais:
1. ser filho de uma amiga
2. ser infinitamente mais novo do que ela
3. não ser aquele que habitava seu espelho todos os dias

De qualquer forma, houve noites em que desligar o computador era a única saída para não cair em tentação. Houve momentos em que Jack se afastou, e ela chegou a sentir ciúmes misturados a saudade e raiva de estar tão longe -- em todos os sentidos. Houve dias em que um novo sofrimento se somava ao habitual, e seu nome era Jack.
E a terapeuta? Nada! A terapeuta deu graças a deus quando Jack entrou em cena. Pelo menos ele era real. "Real? Ele é mais que irreal! Ele é inconcebível! Ele não existe e fim!" Nestes dias, abrir o Google e ocupar a cabeça com a imagem do amor impossível, era o melhor remédio.

O tempo passou e muito pouco mudou. Jack ia e vinha, como se às vezes precisasse se afastar e às vezes não vivesse sem saber da existência dela. A velha obsessão continuava tirando o sono dela e dividindo seus dias entre horas de lucidez e horas de insanidade.

Era Novembro quando Naele convidou-a para passar a semana de Ação de Graças em sua casa na montanha. Fim de ano foi sempre uma época de pouco trabalho e muita tristeza, por isso ela aceitou o convite, pensando até mesmo na hipótese de encontrar trabalho por lá e ir ficando. "Quem sabe os problemas são barrados na imigração e ficam para trás?"

.........................0............................

20 de Novembro.
Ela, seu notebook e sua mala chegaram à porta da casa de Naele, em Mammoth Mountain. O frio era obviamente cortante na estação de esqui, nesta época do ano. Encasacada, enrolada em cachecol, luvas, capuz, ela esticou o braço para fora do carro que dirigia e tocou a campainha do portão.
- Alô?
- Oi, é Mônica*.

O grande portão de ferro se abriu como se fosse a Playboy Mansion, enquanto ela conferia o endereço no e-mail amassado que tirou do fundo da bolsa. Em um ano de conversa com Naele, ela jamais soube que a amiga morava numa casa assim. "Se isso é a casa da montanha, o que será a casa em Los Angeles?" Subiu a longa driveway até a entrada da casa, onde foi recebida por um segurança que abriu a porta do carro e perguntou se ela tinha bagagem.
- No porta malas...
- Eu cuido disso. Seja benvinda.

Surreal...muito surreal. Ela sempre imaginou Naele como uma mulher simples, com o computador ligado num escritório improvisado na copa, a máquina de lavar louça batendo enquanto se falavam...E Jack? Jack para ela era um homem bonito e mal vestido, que bebia cerveja vendo jogo com os amigos num sofá de veludo verde gasto. E por que isso? Nem imagino!
O segurança abriu a porta da frente e disse que ficasse à vontade. Antes que ela pudesse perguntar qualquer coisa, a porta se fechou atrás dela e era só ela e a sala enorme, rústica, com uma lareira quase da sua altura.
- Hello?? Alguém?
Ela foi tirando as luvas e o casaco, começou a desenrolar o enorme cachecol quando uma porta bateu em outro cômodo. Ela largou suas coisas em cima do sofá e seguiu o som, andando pela casa.
- Oie...?
As duas folhas da porta da cozinha se abriram. De dentro delas saiu o que para Mônica era uma assombração. Descalço, de camiseta branca e jeans, cabelo despenteado, veio ele: Mister Obsession em pessoa com seus olhos azuis, sua pele bronzeada, seu sorriso incrível...
- Oi? - ele disse com ar de curiosidade
Ela demorou uma eternidade para poder responder.
- Ta tudo bem?
- Err...oi. Eu...eu acho que entrei na casa errada...eu tenho um endereço, mas acho que...

Mais surreal! Só acontece com ela, eu falei! Ela viajou dezoito horas, pegou um carro alugado e dirigiu um monte, o jet leg fazia com que ela se entendesse cada vez menos. O que aquela criatura estava fazendo naquele endereço? Era amigo do Jack? Era um fantasma? Ela estava sonhando de novo e ia acordar no avião?

- Calma, deixa eu ver o endereço.
Ela não conseguia sequer se mexer.
- Ta tudo bem?
- Não. Quer dizer...não sei.
Ela andou até a sala onde tinha largado as coisas, pegou o papel na bolsa e ele se aproximou para ler.
- Ta certo. É aqui. -- Mas ele franziu as sobrancelhas quando viu o nome no papel. Tirou o papel da mão dela, desdobrou nervosamente, leu o e-mail inteiro. -- Mônica? Você não é a Mônica!
Mais confusa ainda ela respondeu que sim, ao que ele não reagiu bem.
- Como assim? Você ta brincando, ne?
- Não...brincando por que? Eu sou a Mônica. E você ta aqui por que?
- Eu moro aqui. Jack. Eu.

Hello? O mundo caiu!
Jack e Mr. Obsession eram a mesma pessoa? Durante um ano ela esteve dividindo sua atenção entre Jack e Jack, sem saber? Durante um ano ela fazia Jack e Jack trocarem de lugar para aliviar o coração da paixão por um e da obssessão por...ele mesmo?
Mas o nome da mãe do Mr. Obsession não é Naele! Não...é Meredith N. Stephen -- Meredith Naele Stephen -- mãe de Jack Lindermann -- nascido Jacob Stephen-Lindermann -- Hollywood hunk, superstar, parte do top ten list de atores mais bem pagos, um dos solteiros mais cobiçados do showbis. E a terapeuta? Fuck a terapeuta! Agora tudo estava mais do que confuso...ou não.

- Jack? Não pode ser...
Ela riu e se aproximou dele mas ele deu um passo atras.
- Você não é a Mônica. A Mônica é velha.
- Eu sou velha.
- Não é. A Mônica tem a idade da minha mãe.
- Não. A sua mãe tem 62, eu tenho 45.
- Você não pode ta falando sério.
- Que que ta acontecendo?
- Olha pra você. Eu passei um século achando que você era igual à minha mãe e você aparece desse jeito...?
- Que jeito?
- Assim! -- ele apontou pra ela, olhando de cima abaixo -- olha a tua cara! olha o teu corpo! olha tudo...por que que você não...
Bufando furioso, ele comprimiu os lábios com raiva, deu um soco no aparador perto do sofá.
- Jack...calma...por que você ta com raiva?
- To. Eu to odiando você Mônica. Você não faz idéia. Não faz idéia...

Ela nem pode se recuperar do primeiro golpe e já estava tentando entender mais uma parte dessa história maluca. Ele se alterou, falava muito alto, com gestos grandes:

- Você sabe quantas noites eu quis bater a cabeça na parede até parar de pensar em você? sabe quantas vezes eu quase entrei num avião pra ir te falar que "foda-se se você tem cento e dez anos e tá apoderecendo, porque é com você que eu quero ficar"? Você tem noção das coisas que eu passei? Do quanto eu enchi a cara? Eu fui no psiquiatra!
- Jack...
Ele chegou bem perto do rosto dela, com muita cara de ódio:
- Sabe com quantas mulheres idiotas eu saí, de saco cheio porque ia levar 40 anos pra elas chegarem aos seus pés? Sabe quantas mulheres eu comi pra tentar gostar de alguém? E agora você aparece, 20 anos mais nova...
- Vinte anos mais velha que você.
- São 17. E foda-se!
- E amiga da sua mãe.
- Foda-se também...puta que pariu, Mônica, eu virei um lixo! Por que você acha que eu passava tempos sem entrar online? Porque eu tinha que largar você, entendeu? Eu tinha que tentar achar outra coisa pra fazer, que fosse melhor do que ficar me torturando. Mas quer saber? Não tem!
Ela riu e balançou a cabeça...
- Por que você nunca me disse que era o Jack Lindermann?
- E agora, olhando pra você aí, toda bonitona, me dá mais raiva ainda de pensar que você tem aquela paixão idiota pelo cara la que você não diz quem é! Antes okay...você tem a idade da minha mãe e ele deve ser um velho, azar! Mas não é ne? quem é ele, Mônica?
- Jack, eu acabei de chegar....eu to cansada, com jetleg, acabei de ver a sua cara pela primeira vez, ainda nem me recuperei, e você ta tendo o ataque de ciúme mais absurdo que eu já vi!
- Absurdo o caralho, Mônica! Eu to puto! To me sentindo idiota, trouxa, traído pra caralho!
- Jack...
- Por você e pela Dona Meredith que merece morrer! Que ódio!
- Jack...vem cá.-- ela se aproximou dele, tentou abraçá-lo.
Ele se afastou bruscamente, empurrando os braços dela para longe.
- Abraço nada! Sai!

Sem dizer nada, ela virou e foi buscar a bolsa e o casaco.
- Onde você vai?
- Cadê a sua mãe, Jack?
- Só chega de noite.
- Então diz pra ela que eu volto quando ela tiver em casa.
- Onde você vai?
Ela pegou as coisas e foi para a porta.
- Eu volto à noite! - respondeu sem olhar para tras.

.........................0............................

21 de Novembro

- Mãe, cadê a Mônica.
Sem tirar os olhos do computador, uma Naele meio calma demais responde:
- Não sei...você me diz.
- Ela não voltou?
- Você viu ela aqui?
- Mãe eu não acredito que ela não ligou pra você. Fala!

Naele girou a cadeira lentamente na direção dele, pegou a carteira de cigarro, ofereceu a ele.
- Quer?
- Não mãe. eu quero saber cadê a Mônica, só isso.
- Tentou o celular?
- Ela não atende. Você falou com ela?
Ela acendeu o cigarro, tragou, soltou a fumaça muito calma
- Você atenderia, Jack?
- Mãe, ela ta sozinha em algum lugar. Ela DORMIU sozinha em algum lugar. Me diz que você sabe onde ela tá.
- Eu sei onde ela tá, Jack, mas não vou te falar e você também não vai atrás dela.
- Eu preciso.
- Não. ELA precisa de um tempo. Você fez todo o seu comício e não deixou ela falar. Você gritou e esbravejou porque acha que sofreu, meu filho.... mas ela passou por coisas muito piores que você. Ela não tinha comício pra fazer, mas podia ter tido um enfarte a hora que te viu.
- Como assim? Por que?

Medindo as palavras, Meredith contou a Jack o que a amiga disse a ela, chorando, num Café no centro da cidadezinha. Toda a história da obsessão, desde o sonho, até o momento em que Mônica percebeu que estava se apaixonando por Jack e tentou evitar. Todos os conflitos que ela viveu no decorrer do ano por se achar louca, antes apaixonada por uma foto, depois pelo filho da amiga, vinte anos mais novo...

- E o que que você acha disso tudo, mãe?
- Eu acho que vocês dois perderam tempo demais. Você podia ter me pedido pra ver uma foto da Mônica; eu tenho acesso a milhares delas. Você podia ter me dito o que tava acontecendo, eu daria um jeito de vocês se encontrarem antes. Ela podia ter me contado sobre qualquer uma das paixões dela e eu teria ajudado - com qualquer um dos dois...
- Você podia achar ruim ela ser sua amiga, e a diferença de idade, brigar comigo, sei lá.
- Jack...você é o meu filho querido. Ela é a minha amiga querida, e se não fosse, eu não chamava ela pra vir pra cá. São as duas pessoas que eu mais quero ver felizes.

Jack deu um beijo na mãe que o abraçou por um bom tempo.

- Como você é burro, Jack Lindermann...
- Que que eu faço?
- Vai tomar um banho e ficar lindo.
- Mas mãe...
- To falando...vai logo!

Assim que ele deixou o escritório, Naele saiu. Ao entrar no carro, falou com o segurança:
- Minha amiga Mônica vai chegar. Ponha as malas dela na ante-sala do quarto do Jack, sem que ela veja, e avisa os dois que eu volto dia 24 pra receber os convidados.
- Sim senhora. Boa viagem.

Quando a Mônica chegou, a casa estava vazia e silenciosa. Ela andou pelos cômodos sem encontrar ninguém...entrou na cozinha, passou pelas várias salas, entrou no corredor. Havia música vindo de um dos quartos. Foi até a porta, virou a maçaneta devagar, a música aumentou um pouco. Era uma sala de estar com um sofá, TV, fotos de Jack na estante...e outra porta que ela tentou abrir, mas estava trancada. Bateu.
- Jack?
Sem resposta.
- Jack? Abre? Sou eu...
Bateu novamente.
Cléck. A porta foi destrancada.
A maçaneta girou lentamente.
A porta se entre-abriu.
De cabelo molhado, sem camisa, um "meio Jack" apareceu.
- Oi.
- Oi... preciso contar uma coisa que você não sabe.
- Hm...medo das coisas que eu não sei.
Encostados na porta, meia Mônica para dentro, meio Jack para fora, palavras pausadas, frases curtas, os dois falando baixo, quase sussurrando, muito perto um do outro. Jack fingindo fazer pouco de cada frase dela.
- Aquele cara que eu falei...
- hum.
- ...que eu me apaixonei assim...sem volta...?
- Sei...
- Ele tem olhos incríveis...
- É?
- É...e um sorriso.
- hum.
- ... quase a prova de que deus existe...
Jack sorriu, com os olhos brilhando, e provocou:
- Que mais...?
- O corpo dele...
- Que que tem?
Ela encostou a testa no peito dele:
- É muito pra mim...Jack.
- É nada... -- abraçando -- ...conta mais.
- As mãos?
- Que que tem?
- Parece que se eu der a mão pra ele... se a minha mão couber na dele...e cabe, eu posso andar pra sempre, sem medo de nada.
Jack pegou a mão dela, fechou a sua até cobrir a dela, entrelaçou seus dedos. Ela sorriu, com a outra mão engatou um dedo no cós do jeans dele, puxou para perto.
- Mas mesmo que ele não fosse assim, eu...
- Você...
- ...ia ser louca por ele...

Ele puxou Mônica para dentro do quarto
- Vem aqui, velhinha...


Ai ai...
Tem coisas que não acontecem fora dos filmes, mas eu juro: acontecem com ela!
Livre de um hospício, ela agora vivia outra agonia: suportar ser Mrs. Jack Lindermann - a bruxa malvada estrangeira e velha que fisgou o peixe que todas queriam -- revista de fofoca...tablóides...fans enlouquecidas...falta de privacidade... cenas de amor com atrizes lindas e jovens...viagens intermináveis. Mas no fim do dia, todos os dias, ainda era a presença de Jack que curava tudo, e fazia a vida valer a pena.

É a vida que imita a arte, ou a arte que ouve os sonhos dos vivos?


Bom fim de semana.


*Acho que vai ser pra sempre Mônica

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