Jack & Mônica - telefone II
Metade do dia passou sem que eu tivesse coragem de pegar o telefone enquanto ele ficava lá, sendo ele mesmo. De hora em hora apitava para lembrar que existia, sempre piscando aquela luzinha verde, como se risse da minha cara. “Estou aqui! Estou aqui!”, Ah...que irritante! Se ninguém ainda havia percebido, eu não ia fazer o papel ridículo de discar aquele número. Como era mesmo? 310-829.2435!
“www.310.com” - uma loja virtual de artigos esportivos, site under construction.
“310.org” , um site de música, crítica de CDs e animações shockwave.
“310 - North American telephone area codes 310 and 424 are West Los Angeles and South Bay Area of Los Angeles County ”.
Ha! Santa Wikipedia! Lá fui eu.
Mega aula de “DDD”. Até mapinha tem no site, e todas as explicações de mudanças e substituições de código de área e seus motivos incompreensíveis. Há quem não saiba que Los Angeles não é exatamente uma cidade...é um aglomerado delas; e os lugares que a gente acha que são bairros, são na verdade cidades. É por isso que cada uma tem seu código de área. É como se precisasse de um DDD novo para cada bairro de São Paulo.
Mas o que interessava realmente estava ali na próxima página, na lista de regiões por código de área: “310: Santa Monica, Malibu, Torrance, Beverly Hills, Catalina Island;” em resumo, se você mora bem e é cool, você ganha, no juízo final, um telefone que começa com 310.
Então meu fantasma de olhos azuis era cool e tinha dinheiro bastante para morar bem. Ou era o jardineiro da casa de alguém com os requisitos básicos de uma pessoa 310, o que já o faria mais rico do que eu. Mais rico e mais pão-duro, já que fica pedindo para EU ligar. Então, eu...euzinha, aqui no hemisfério sul, vou discar um número internacional e falar em inglês com o jardineiro de algum ator gostosão. “Oi, ta sem crédito?...me dá o número do seu patrão.”
Ah...como eu queria que por dentro eu estivesse sendo tão espirituosa. A verdade é que aquele, como os outros sonhos, tirava a minha paz e todo o meu senso de realidade. Minha verdadeira vontade, às vezes, era bater na porta de uma clínica psiquiátrica e pedir arrego: “Me leva, moça...me amarra que eu preciso!”
A casa me sufocava com a sensação de estar deixando de fazer alguma coisa. Tudo estava feito, e não havia o que me fizesse discar aquele número. Peguei o carro e saí. Tinha uma feirinha de antiguidades e artesanato no parque ali perto de casa, então achei que não precisava ir muito longe para me distrair. O lugar estava cheio de gente bonita e crianças alegres. Havia música no coreto, barracas de comida, grandes áreas verdes para descansar e uma apresentação de dança na pequena ilha, no meio do lago. Divertido. Comprei um pastel - daqueles que a gente não conta para ninguém que gosta - e fui sentar na beira do lago. Assim que sentei, um homem de chapéu com um realejo veio chegando para o meu lado.
“Vamos ver sua sorte, senhorita?”
“Vamos”, eu respondi sabendo que ultimamente a sorte havia me deixado. Seria engraçado ver a cara dele quando descobrisse que todos os bilhetinhos tirados para mim estariam em branco. Ele se assustaria achando que era algo sobrenatural, mas mal sabe ele que “sobrenatural” seria se houvesse alguma sorte reservada para mim.
Ele ignorou meu olhar descrente, e começou a rodar a pequena manivela que tocava uma canção que eu não identifiquei. Enquanto isso, um mico escravizado assustador abria a gaveta da caixinha e escolhia um papelzinho azul para mim. O mico esticou o mini-braço com a mini-mão que parecia a de um humano que caiu nas garras de uma tribo encolhedora de cabeças, e tentou me entregar o papel. Eu não teria coragem de pegar nada que viesse daquela pequena aberração. Olhei para o homem num pedido de socorro, mas descobri que ele não era aberração menor. Na verdade, homem e mico eram um par perfeito, talvez vindos do mesmo DNA. O mico era o “Mini Me” do realejo. O homem balançou a cabeça revirando os olhos, mas resolveu me salvar. Pegou o papelzinho azul da mão de seu mascote-xerocado e me entregou. Sem olhar para o papel, eu dei uma nota de cinco para ele, que agradeceu e foi embora. Enquanto ele andava, o mico, em suas costas, olhava para mim e parecia rir, o mini-monstro.
Assim que me senti numa distância segura, olhei o papel.
Não! Eu sabia, droga! Eu sabia que qualquer que fosse o oráculo ridículo que eu me permitisse consultar, diria a mesma coisa. Nem um biscoitinho da sorte diria nada vago e relaxante naquele dia estúpido.
Levantei do chão de mal humor, amassei o papelzinho do monstro e fui ver outra coisa. Quem sabe gastar dinheiro em objetos desnecessários me distraísse da idéia de seguir os avisos do destino. Grande tapeadora de oráculos!
Saí olhando as barracas sem uma ordem coerente, até que uma me chamou mais atenção. Eram obras feitas de conchas - uma mais brega do que a outra -, quase todas marinas com a presença de sereias. Mas o mais interessante era a artista que as confeccionava: uma velhinha de cabeça muito branca e bochechas coradas, com delineador azul claro combinando com os olhos azuis, toda vestida de turquesa. Ela própria era a peça mais kitch da barraca. Ela sorriu faceira. Sua voz era jovial para a idade, e a alegria que vinha dela, mal cabia no parque. Perguntou se eu procurava por alguma coisa especial. Eu disse que estava apenas olhando, e ela sorriu um sorriso inesperado, mostrando dentes perfeitos e muito brancos, que definitivamente não condiziam com a idade dela. Eu franzi um pouco a testa, estranhando, e ela reparou. Colando pequenas conchas em mais um quadro de sereia ela disse:
“Às vezes, as escolhas têm um preço.”
“Do que a senhora está falando?”
“Da estranheza nos seus olhos.”
Eu fiquei sem jeito.
“Desculpa...é que é difícil definir a sua idade. Não que eu precise, mas é...não sei. Desculpa.”
“Está tudo bem. Eu sei. Todo mundo estranha, mas nem todo mundo percebe exatamente o que é. Parece que você é mais sensível.”
“Sou?”
“É...eu estou vendo nos seus olhos. Começa assim, e depois são os cabelos...depois a postura...mais tarde...”
E ela mostrou a si mesma, como se exibisse uma obra de arte.
O que ela queria dizer? Que eu seria mais tarde como ela? Por que?
“Não estou entendendo...”
“Eu precisei escolher, mas achei que tudo pudesse esperar... Que o que era meu o seria para sempre...que tudo era mágico demais para ser real... mas não era verdade.”
Minhas sobrancelhas se juntaram, como se pudessem me ajudar a fixar e entender o que aquela figura falava. Ela continuou.
“Chegou o dia em que o destino cansou de mim. O mar foi embora e quando eu me olhei no espelho, estava assim.”
“Por que?”
“Ah...acho que é como um feitiço...uma forma de me lembrar todos os dias que o tempo passa, e que quando a gente não vai buscar o que a alma nos pede, ela envelhece e entristece.”
Aquilo me encheu de uma tristeza quase palpável.
“Mas não há o que fazer? Não tem como você reverter isso agora?”
“O futuro muda de acordo com as decisões que você toma. Se eu voltasse atrás hoje, e seguisse aquele mesmo caminho, não haveria nada do outro lado. Aquele futuro, ficou no passado. Só o que há dele são algumas lembranças e isso” - ela pegou nos cabelos - “o símbolo do tempo que eu perdi”.
“O que é a sereia?” Eu perguntei, curiosa.
“La Cantante. O impulso irresistivel a que eu tive a ousadia de desafiar.”
“Parece triste...” eu disse baixo, com medo de magoa-la. Eu podia imaginar a dor que vivia dentro dela agora. “Mas você parece ter uma alegria ...”
“É o conhecimento. Eu uso o que vivi para salvar outros do meu calvário. Sempre que alguém está salvo, deixa parte da alegria comigo. É uma troca. Eu não cumpri o plano A do destino, mas ele me deu uma boa missão como plano B, e é uma missão feliz.”
“Você está dizendo que eu preciso ser salva?”
Ela soltou uma gargalhada gostosa.
“Não...só estou respondendo o que você me pergunta.”
Eu ri junto com ela, olhei mais uma vez as sereias e me despedi.
Ela me chamou de volta, perguntou se eu gostaria de levar alguma coisa.
“Ah...adoraria, mas não trouxe dinheiro.”
Ela virou a cabeça como se estivesse em dúvida.
“Mas eu posso te dar um presente, não posso?”
Mais do que rápido, tentei me livrar. Eu não teria nem para quem dar aquela coisa horrível.
“Não, não! Este é o seu trabalho...eu não posso aceitar.”
Ela sorriu com todos aqueles dentes.
“Eu nunca daria um deles a você. Eu os faço para mim. Quero lhe dar outra coisa.”
Ela enfiou a mão num baú que estava no chão, e tirou uma coisa branca, do tamanho da mão.
“Pegue...para você se lembrar.”
Era um caramujo branco, estranho, com brilhos de pedra e não de concha, que parecia ter sido incrustado com milhares de minúsculos brilhantes. Era lindo!
“Nossa...é incrível...nunca vi um assim.”
“Não é?” - Ela disse esticando o caramujo para mim. - “Escuta. Põe no ouvido.”
Eu obedeci.
Encostei o caramujo no ouvido e um zumbido estonteante penetrou meu cérebro como uma adaga afiada nos dois gumes, cortando por onde passava. Tudo girou. Eu senti um perfume forte de açúcar, baunilha e lavanda que entrou pelas narinas queimando até encontrar a ponta da faca no alto da minha cabeça.
O mundo escureceu.
Silêncio.
Uma dor no meu peito. Uma pressão forte. Um perfume...
Tive medo de abrir os olhos. Abri um só. As ripas acima da minha cama. “Como?”. Tive medo de abrir o outro, mas o fiz. Procurei o relógio na cabeceira: oito e meia. Olhei para a janela, era dia. Tive medo de levantar. Virei de lado e cobri a cabeça com o travesseiro. Meu rosto tocou uma coisa gelada. Tive medo de ver o que era. Meu rosto vibrou. Era o celular. Tive medo de ver quem era. Empurrei o travesseiro e afastei o rosto devagar. Olhei o visor...310-829.2435.
Pisquei várias vezes e olhei de novo: 310-829.2435.
Meu coração congelou. Fiquei olhando sem ação, apoiada nos cotovelos. Atender ou não, não era a única coisa que ocupava minha cabeça. Ainda havia o zumbido. Ainda não sabia se estava acordada. Não tinha mais a menor idéia do que era ou não realidade. A imagem da jovem-velha ocupou meu olhos: “o tempo que eu perdi” foi a frase que me veio.
Sussurrei ao telefone.
“Alô.”
Houve um silêncio prolongado.
“Alô?”
Nada. Eu não tive coragem de desligar. Podia perceber alguém respirando. Era uma constatação e tanto: o dono daquele número respirava! Tentei outra vez, em inglês.
“Hello.”
A respiração tornou-se mais intensa. Um sussurro quase inaudível e triste, soou como um lamento do outro lado da linha.
“Quem é você?”
“Quem é VOCÊ?” - eu sussurrei de volta.
Ele ficou em silêncio e foi como um vácuo gigante no tempo. Uma espera que podia esvaziar o pensamento de todos os cérebros do universo. Não aguentei e respondi antes dele.
“Mônica.”
“Monica...”
“É...Monica. Você?”
Hesitante e ainda sussurrando:
“Você...sonha...também?”
Wow! Como assim? Ele sonha? Aquilo parecia brincadeira, e eu não aguentava mais me sentir um fantoche nas mãos do destino, do tempo, da mulher das conchas ou do meu próprio delírio.
“Você sonha?” - eu devolvi, temendo a resposta que, na verdade ele já havia dado.
“As vezes...mas hoje... o número... Por que eu sonhei com o seu número, Monica?”
Ele parecia quase tão angustiado quanto eu.
“Eu não sei. Eu sonhei também...mas eu não sei o seu nome. Me diz?”
"Jack.”
“Você está em Los Angeles?”
"Sim. E você? Brasil, ne? ”
“São Paulo.”
“Eu te convidaria para almoçar, se fosse São Pedro.”
Uma risada saiu junto com o ar do meu nariz.
“Você está bem...Jack?”
Em nenhum momento, aumentamos o tom de voz. Sempre um sussurro, como se o outro fosse desaparecer ao menor movimento mais brusco.
“Acho que sim. E você?”
“Aliviada, acho.
Médio...depois do caramujo eu não sabia mais o que pensar. Eu estaria acordada agora, ou em poucos minutos abriria os olhos e veria as ripas no teto do quarto?
Jack?”
“O que?”
“Seus olhos...que cor?”
“Os seus são castanhos, eu sei.”
“são.”
“Azuis.” nós falamos ao mesmo tempo.
Eu sabia...
Ficamos em silêncio novamente. Eu estava fazendo 865 perguntas mentais, mas não era capaz de pronunciar nenhuma delas. Tive a impressão do mesmo estar acontecendo com ele.
“Onde você tá agora?” Ele perguntou.
“Na cama.”
“Que horas são?”
“Quinze pras nove, acho. E você?”
“Na praia. Vim correr pra me ac....”
“Se acalmar do sonho?”
“É...eu sempre fico muito...”
“Tá tudo bem agora. Fica bem.”
“Monica..."
"O que?"
"Me promete?”
“Qualquer coisa...”
“Sempre que eu ligar...atende. Sempre?”
“Prometo.”
“Jura? Não desaparece?”
“Juro. Você também.”
“Nunca mais...mesmo.”
O silêncio voltou e com ele um aperto no coração. Que diabo!
“Monica, tenho que desligar, mas...posso ligar outra vez hoje?”
“Quantas vezes você quiser, Jack. Eu vou estar aqui. Posso também?”
“Ah...por favor...E nem pense em me largar de novo.”
De novo?
Foi ruim desligar. Pela primeira vez o termo “linha telefônica” fazia sentido para mim. Enquanto falávamos, havia uma linha que nos ligava um ao outro. Não que ela não existisse antes, mas esta parecia mais palpável. Desligar foi cortar esta linha, e eu posso imaginar um Jack de olhos azuis vagando no espaço, perdido, longe de mim. Desligar o telefone era desligar a gravidade. Para ter os pés no chão novamente, precisariamos estar conectados de uma forma real.
Com certeza eu ligaria para ele hoje...e amanhã, e todos os dias, até que todo o dinheiro que guardei na vida tivesse se esvaído em ligações internacionais.
imagem: Whirlpool Galaxy - M51a, localizada a 23 milhões de anos luz, na constelação de Canes Venatici
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